Quando a luz dos olhos teus resolvem me encontrar…

Otto
Otto

O gato aqui de casa – o que mia e toma leite no pires – precisa trocar a ração na época em que troca o pêlo. Até aí morreu Neves. Compra-se a ração que a veterinária determinou e está resolvido. O que a veterinária esqueceu é que este não é um gato qualquer – é um virginiano com ascendente em Touro e nada, mas nada mesmo, acontece com ele sem sua aprovação.

Então, ficamos assim: eu coloco a ração fresquinha no prato dele e volto ao escritório para trabalhar. Mas alguma coisa me perturba. Olho para o lado e aqui está o gato, olhando fixamente para mim. Não é um olhar pidão ou humilde. É um olhar exigente. Acusador. Tento conversar com ele – o que mais posso fazer? Preciso trabalhar e ele precisa entender que a troca da ração é para o seu bem. Você entendeu? Nem ele. Se o ignoro, ele sobe em cima da bancada para ficar de frente para mim e lá vamos nós: eu finjo que ele não está me perturbando, ele não finge que obedece.

Depois do jantar, coloco mais ração fresquinha no prato dele e sento para ver um filme. O gato estaciona, literalmente, não só em frente ao sofá, mas de frente para mim. Você sabe o que é tentar se concentrar em qualquer coisa com um par de olhos ferinos fixos em você? Converso com ele de novo, ele não mia, não desvia o olhar, não esboça qualquer tentativa de negociação. Parece uma estátua. Continua me acusando de insensível. Posso ouvi-lo me dizer que se eu acho tão bom, porque eu mesma não engulo aquela gororoba seca? Eu finjo que vou à cozinha pegar um café, mas quero mesmo é espiar se ele comeu um grão que seja. Nada. Ele não se mexe, mas o olhar continua fixo em mim – parece um quadro de casa mal assombrada.

No terceiro dia sem comer, eu já estou desesperada e ele continua tranqüilo e infalível como Bruce Lee. Agora, não bastasse a perseguição diurna, à noite ele senta ao lado da minha cama e fica me olhando até eu apagar a luz. Quando eu pego no sono ele morde e puxa meu cabelo até eu acordar. Levanto com ele no colo, levo até sua ração, troco a do prato por uma fresquinha do pacote e sento em uma cadeira em frente, falando carinhosamente que ele precisa comer. Por favor, por favor, por favor. Nem um grão. Ele fica de costas para ração e de frente para mim. O olhar é enlouquecedor.

Mas eu sou adulta, resolvida, psico-analisada, não posso deixar que o olhar fulminante de um gato me perturbe. É essa ração e estamos conversados, ordens médicas são ordens médicas. Não é porque um gato está fazendo greve de fome que eu vou ficar com sentimento de culpa. Era só o que me faltava! Ainda se ele fosse carinhoso, humilde, se ronronasse, mas não, ele é arrogante, como se eu existisse para atender suas exigências. Não mesmo… eu fiz 4 anos de análise e tive alta para quê? Evidentemente para ligar para veterinária na manhã do quarto dia e pedir, pelamordedeus, que troque a ração desse gato.

Ou isso, ou eu volto pro analista.

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3 Comentários on Quando a luz dos olhos teus resolvem me encontrar…

  1. Genial !!!!!! Felino é isso aí. Olhar eletrizante e parado.
    Já, se fosse um cachorro, iria derrubar a comida, latir e passar a pata até que vc dessa atenção….
    É o bicho……

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