Eu respondia que ele estava louco. Só pode. Eu mantinha sempre a cabeça baixa e o olhar arredio porque essa era a minha sentença, pessoal e intransferível. Quanto mais me perguntavam por ele mais eu tinha certeza. Ele era o ser mais insano, mais doido e inconsequente de que eu tinha conhecimento. Não que eu o conhecesse. Nem sei se alguem realmente conhece alguém. Lembrei daquele livro, Ninguém é de Ninguém. De quem? Não sei se li até o final. Pensando bem nem sequer sei se li mesmo. Á vera, ele era aquele livro, grandes parágrafos descritivos que não diziam quase nada do que se acha que é preciso saber. Ele tinha a mania de descrever uma cena dando ênfase para o estado de uma cadeira sob a janela. Depois descrevia a janela, depois a luz vinda da janela. Tudo perfeito, lotado de imobilidade. Era uma cadeira vazia, uma janela vazia, uma luz vazia. Uma cena linda e vazia.
Aquele livro… Era ele, pequenas histórias dentro de um drama, cheio de pontos finais onde eu lia interrogações absurdas e tinha vontade de colocar vírgulas, como tenho sempre que leio Saramago. Saramago e sua falta de pontuação me causam falta de ar. Ele, o louco, também. E foi na primeira interrogação dele que eu achei, intuí na verdade, a raíz da loucura. Ele era lindo, mas nem por isso menos louco, louco, louco. Nada a ver com a loucura dos poetas, mas daquelas que acometem pessoas sem eira nem beira, que andam por aí sem nada a perder, sem pensar no que podem ganhar. Nada. Tudo a ver com poetas, pensando bem. Isso me metia medo. Sempre pensava que a loucura dele poderia invadir a minha sanidade, me transformar em andarilha que atiraria minha vida pro alto pra recebê-la aos pedaços, os mais densos, em cima e pra mim. Eu repetia que ele era louco. Ele ria. Eu ficava na vontade.
Eu seguia falando sozinha que ele era louco porque ninguém mais perguntava. Acostumaram com o jeito dele, eu acho. Eu falava assim mesmo. Olha, ele é louco. De pedra. Eu tinha medo de me acostumar e depois… Depois assustam. O que será de nós dois? Mentira. Eu só pensava em mim, o que seria de mim, o que sobraria pra mim, o que eu faria de mim. Mais ninguém. Me transformei num monstro egocêntrico disfarçando a deformidade nas unhas pintadas. Caras e bocas. Ninguém é de Ninguém.
E ainda por cima eu morria de inveja daquela cadeira eu queria aquela cadeira aquela janela aquela luz eu tinha inveja daquela irreverência que eu chamava de loucura eu queria aquela saciedade absurda de pontos e vírgulas queria ser ele queria ele vazio.
Eu disse isso? Mantive a cabeça baixa e o olhar arredio. Eu estava ficando louca. Só pode.
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