Essa Mulher

“(…) a cidade que eu não conheço, que você não conhece; são as ruas que nós não atravessamos, são os outros caminhos possíveis.” [Jorge Luis Borges]

Italo Calvino escreveu “As Cidades Invisíveis” e batizou todas as cidades do seu livro com nomes femininos. Não por acaso. Uma cidade, qualquer cidade, mesmo uma como “o” Rio de Janeiro, maltratada pela violência urbana, humilhada pelo descaso, por ruas cansadas de multidões que não distiguem seu povo de turistas, é mulher, brejeira, encantadora, tendenciosamente charmosa mostrando sempre e melhor o que lhe cai bem. E como lhe caem bem os contrastes de mulher que não esquece o jeito de ser menina, com seus morros sinuosos, suas montanhas esguias, praias bocudas ensaiando sorrisos manhosos. Como toda mulher, também tem labirintos curvilíneos que vão dar em recantos misteriosos ou em lugar nenhum. É da natureza das cidades, faz parte deste mundo feminino.

Tenho fascínio por ela, a cidade do Rio que adotei como minha, porque além de mulher ela é madura, e pensa — mas só pensa — que já viveu tempos melhores. Uma mulher, ansiosa e enérgica que passa noites em claro cuidando dos filhos famintos e desorientados, dos amigos mortos, dos amantes esfolados. E como toda mulher que carrega tantos anos, que já viu de um tudo – até do que Deus duvida -, e que já sofreu um tanto, nem sempre consegue esconder suas cicatrizes de calçadas indigentes, de muros raspados de balas perdidas. Mas, o que ela guarda mesmo são os fogos das viradas de ano, os carnavais em que ela é destaque e especialmente, os dias de glória. Então, depois dessas noites famigeradas e insones, essa mulher generosa sorri para o sol beijando-lhe as faces, lança uma piscadela de olho por sobre o pessimismo, sobre as manchetes dos jornais e das más línguas, oferecendo tendenciosa beleza aos amigos, caloroso conforto aos seus filhos e um gingado apimentado aos amantes.

cidadesComo uma bela mulher, cuja beleza tanta a deixou mundialmente famosa, atrai gente de muito longe para apreciar seus contornos. Uma mulher tão linda — e dizem que toda a mulher linda demais é perigosa — enlouquecendo estrangeiros, maravilhados ou ingênuos, em noitadas de amor ou em ciladas viciadas. A cidade do Rio, charmosa e sensual, inspira sambas nos morros, faz bossa em Ipanema, cantarola no Leblon, passeia pelo Jardim Botânico, dança sob os Arcos da Lapa, banha seu corpo em Copacabana, Praia Vermelha — rubra de encanto. Passa pela Enseada de Botafogo e, sinuosa, pelo Aterro do Flamengo. E de quebra, tempera Pão com Açúcar onde por ela se arrasta um bonde. Rio é mulher sestrosa, às vezes escancaradamente indecorosa, mas cujos pecados parecem ser reduzidos por um Cristo sempre Redentor.

Quem a conhece não pode deixar de amá-la mesmo sabendo de seus perigosos caminhos, dos seus insidiosos atalhos, pois quem a vê iluminada de noite ou iluminando um dia, por ela se enamora quase assustadoramente. Quem nunca lhe viu de tão perto e idealiza sua beleza tão exposta, tem um pé atrás do otimismo, acha que ela é
bandida, traiçoeira como sereia que canta e encanta para atrair marinheiros desavisados. O contrasenso é certo. Mulheres sempre despertam sentimentos contrários, confusos e inseguros. As regras são simples para entender esse mistério: morar com uma mulher, seja ela qual for, exige adoração pelo seu calor e desprendimento. Já, para um visitante ela oferece alegria, mas pede cautela e um punhado de respeito — e pré-disposição para conhecê-la de perto. É bom ter sempre um mapa à mão, mas apenas como indicativo porque mapear uma mulher, especialmente uma como essa, é tarefa inconclusiva.

Por isso, peço licença para alterar o fragmento de poema de Jorge Luis Borges, falando de outra mulher bonita, com outros contornos e adornos, a noturna Buenos Aires, para dizer a quem na cidade do Rio de Janeiro ainda não conseguiu pôr os pés, por falta de oportunidade ou receio e, ainda para aqueles que não conhecem todos os seus (re)cantos:

“A mulher que não se conhece são as ruas não atravessadas, são os outros caminhos possíveis.”

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1 Comentário em Essa Mulher

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